Rompemos o primeiro selo do apocalipse.
A arte tende, cada vez mais, a tornar-se um produto enlatado. Como toda
produção industrial pós-fordista (frase de efeito!), é questão de facilitar o
caminho. A literatura aparece pré-cozida, instantânea, padronizada, embalada.
Quanto mais fácil a digestão, melhor!
Cursos de escrita criativa, blogs
manualísticos (certo, é um neologismo), livros universais da técnica literária:
tudo programado para deixar a leitura fácil e comercial. "Aqui é
assim!", "Ali é assado!", "Acolá faça isto!". Existe
forma mais horrível de matar um escritor? Torna-se um zumbi-escrevente.
Surgiu o modo de produção: a cópia da
cópia da cópia da (quem começou o ciclo?). Causar empatia? Diga que a
personagem lutará pela família. Identificação com o/a protagonista? Descreva apenas
os detalhes e - não esqueça - coloque algo bizarro (um relógio do Mickey, quem
sabe). Como estruturar? A Jornada do Herói, lógico (óbvio?). Pare a mania de
descrever cenários! Há orientação robótica nas fábricas do mundo e há
escritores adestrados.
É objeto passivo o escritor alegre por
seguir fórmulas pretensamente universais (se doeu, ótimo: há esperança). Na
filosofia chama-se "coisificação" ou alienação do sujeito. A essência
do Homo Sapiens - segundo esta concepção materialista - é sua capacidade
criativa. Quem nega o pensamento, a criatividade e a individualidade - para
seguir leis estéticas do mercado - é qualquer coisa que não um humano
(quase-humano, talvez).
A arte existe por necessitarmos dela.
Ao matarmos a arte, morremos. O escritor tem - iniciamos a trama - uma linda
missão, a de ser o investigador. Procure uma forma nova de dizer, uma estética
nova, um novo conteúdo, um ponto de vista inédito. Investigue! Reafirme a tua
humanidade em um mundo coisificante, bruto.
Somos, os três, o mutualismo
totalizante. A vida inexiste sem a arte que inexiste sem nós que inexistimos
sem a arte que inexiste sem a vida. Estamos interligados em nível subatômico!
Sabe-se lá se, até aqui, o leitor-escritor
está convencido. Insisto um pouco mais ou quantas vezes preciso for. Imaginemos
que vamos nos dedicar a outra arte.
Estudaremos:
Escultor: 1. história das esculturas;
2. as diferentes técnicas; 3. acharemos o próprio rumo.
Pintor: 1. idem; 2. idem; 3. idem.
Ator: 1. idem; 2. idem 3. idem.
Músico: 1. idem; 2. idem; 3. idem.
(Etc.: idem; idem; idem.)
Por que - ó, Lúcifer, Anjo da Luz! -
seria diferente com a arte de escrever?
"Não há faculdade para escritor,
oras!", o antagonista imaginário responderá. A resposta é (na minha
opinião?):
1. Leia, mas leia de verdade.
Os grandes clássicos, os de prêmio
Nobel, as teorias, as filosofias.
2. Pratique, mas pratique de verdade.
Procure caminhos, descaminhos,
"aquele capítulo pode ter outro formato?".
3. Estude.
Quem sabe alcance, enfim, pelo menos, o
posto de escritor medíocre. Ler e escrever são invenções humanas; esqueçamos,
portanto, a falácia dos "talentos naturais".
4. Encontre-se.
Quem ganhou espaço na história da arte?
Quem abriu um caminho novo na mata (metáfora antiga e eterna!). O inconsciente,
o subconsciente e o ID farão o papel deles. Faça a tua.
As regras sequer merecem ser quebradas:
já são frágeis. Possuem utilidade para o primeiro passo e inúteis para o andar.
Mas, perguntemos, este texto, em si, é um conselho-regra? Invertamos. Tijolo -
qualquer coisa ou coisificado - precisa de parâmetros?
Liberdade de criação é tudo. Ser livre
é sê-lo (quero dizer: nem precisa escrever algo complicado para afirmar-se
enquanto autônomo). "Ah, mas sou livre para ser escravo!", resiste o
inimigo. Sobre a afirmação, duas dicas chaves-de-ouro:
1. Literatura é a arte de reescrever;
2. Vá se foder.
:: João Paulo da Síria, quase-escritor.
Não eleito - infelizmente - antes da hora. Defende a independência da arte
contra prisões ideológicas e mercadológicas.
Foto: http://www.pexels.com/photo/black-desktop-wireless-keyboard-on-the-note-6184/