sábado, 25 de julho de 2015

ESCREVER É NEGAR MANUAIS



Rompemos o primeiro selo do apocalipse. A arte tende, cada vez mais, a tornar-se um produto enlatado. Como toda produção industrial pós-fordista (frase de efeito!), é questão de facilitar o caminho. A literatura aparece pré-cozida, instantânea, padronizada, embalada. Quanto mais fácil a digestão, melhor!

Cursos de escrita criativa, blogs manualísticos (certo, é um neologismo), livros universais da técnica literária: tudo programado para deixar a leitura fácil e comercial. "Aqui é assim!", "Ali é assado!", "Acolá faça isto!". Existe forma mais horrível de matar um escritor? Torna-se um zumbi-escrevente.

Surgiu o modo de produção: a cópia da cópia da cópia da (quem começou o ciclo?). Causar empatia? Diga que a personagem lutará pela família. Identificação com o/a protagonista? Descreva apenas os detalhes e - não esqueça - coloque algo bizarro (um relógio do Mickey, quem sabe). Como estruturar? A Jornada do Herói, lógico (óbvio?). Pare a mania de descrever cenários! Há orientação robótica nas fábricas do mundo e há escritores adestrados.

É objeto passivo o escritor alegre por seguir fórmulas pretensamente universais (se doeu, ótimo: há esperança). Na filosofia chama-se "coisificação" ou alienação do sujeito. A essência do Homo Sapiens - segundo esta concepção materialista - é sua capacidade criativa. Quem nega o pensamento, a criatividade e a individualidade - para seguir leis estéticas do mercado - é qualquer coisa que não um humano (quase-humano, talvez).

A arte existe por necessitarmos dela. Ao matarmos a arte, morremos. O escritor tem - iniciamos a trama - uma linda missão, a de ser o investigador. Procure uma forma nova de dizer, uma estética nova, um novo conteúdo, um ponto de vista inédito. Investigue! Reafirme a tua humanidade em um mundo coisificante, bruto.

Somos, os três, o mutualismo totalizante. A vida inexiste sem a arte que inexiste sem nós que inexistimos sem a arte que inexiste sem a vida. Estamos interligados em nível subatômico!

Sabe-se lá se, até aqui, o leitor-escritor está convencido. Insisto um pouco mais ou quantas vezes preciso for. Imaginemos que vamos nos dedicar a outra arte.

Estudaremos:

Escultor: 1. história das esculturas; 2. as diferentes técnicas; 3. acharemos o próprio rumo.
Pintor: 1. idem; 2. idem; 3. idem.
Ator: 1. idem; 2. idem 3. idem.
Músico: 1. idem; 2. idem; 3. idem.
(Etc.: idem; idem; idem.)

Por que - ó, Lúcifer, Anjo da Luz! - seria diferente com a arte de escrever?

"Não há faculdade para escritor, oras!", o antagonista imaginário responderá. A resposta é (na minha opinião?):

1. Leia, mas leia de verdade.
Os grandes clássicos, os de prêmio Nobel, as teorias, as filosofias.

2. Pratique, mas pratique de verdade.
Procure caminhos, descaminhos, "aquele capítulo pode ter outro formato?".

3. Estude.
Quem sabe alcance, enfim, pelo menos, o posto de escritor medíocre. Ler e escrever são invenções humanas; esqueçamos, portanto, a falácia dos "talentos naturais".

4. Encontre-se.
Quem ganhou espaço na história da arte? Quem abriu um caminho novo na mata (metáfora antiga e eterna!). O inconsciente, o subconsciente e o ID farão o papel deles. Faça a tua.

As regras sequer merecem ser quebradas: já são frágeis. Possuem utilidade para o primeiro passo e inúteis para o andar. Mas, perguntemos, este texto, em si, é um conselho-regra? Invertamos. Tijolo - qualquer coisa ou coisificado - precisa de parâmetros?

Liberdade de criação é tudo. Ser livre é sê-lo (quero dizer: nem precisa escrever algo complicado para afirmar-se enquanto autônomo). "Ah, mas sou livre para ser escravo!", resiste o inimigo. Sobre a afirmação, duas dicas chaves-de-ouro:

1. Literatura é a arte de reescrever;
2. Vá se foder.


:: João Paulo da Síria, quase-escritor. Não eleito - infelizmente - antes da hora. Defende a independência da arte contra prisões ideológicas e mercadológicas.

Foto: 
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quinta-feira, 9 de julho de 2015

O Significado Oculto em "Dom Quixote" dos Engenheiros do Hawaii


  
Esta é uma das letras mais apaixonantes da banda gaúcha. O "Muito prazer, meu nome é otário", um verso fora do comum, ficou famoso desde o Acústico MTV.

Propomos ler os versos em duas camadas. São duas visões que se complementam. Uma é a da história de Miguel Cervantes, o "Dom Quixote", um decadente e quase-louco cavaleiro medieval. Enfrentou Moinhos de Vento, achando que eram Dragões, com seu amigo Sancho Pança. O viajante sonhador desejava ser como os heróis de seus livros. A obra espanhola fala da relação entre o ideal e o real. A segunda interpretação - a segunda camada - depende da vivência do Humberto, o compositor.

Esta música é do CD "Dançando No Campo Minado". No livro "Pra Ser Sincero - 123 Variações do Mesmo Tema", ele explica que a Guerra de Bush, o atentado às Torres Gêmeas e a explosão de uma bomba perto de seu Hotel no Rio de Janeiro foram o gatilho para as músicas e para o título.

Podemos somar a utopia do Dom Quixote com a utopia - ou a falta dela - nos nossos dias. Vamos para a letra:

"Muito prazer, meu nome é otário
Vindo de outros tempos, mas sempre no horário"

Os trabalhadores são considerados os portadores do futuro nas utopias modernas (socialismo, anarquismo, igualitarismo, etc.). Vistos como injustiçados pelas ações dos ricos, e sempre disciplinados pelo trabalho (sempre no horário).

"Peixe fora d'água, borboletas no aquário
Muito prazer, meu nome é otário
Na ponta dos cascos e fora do páreo
Puro sangue, puxando carroça"

É um complemento dos primeiros. Têm o mesmo sentido. A comparação com um animal e com o transporte de Dom Quixote é o sinal de sofrimento.

"Peixe fora d'água, borboletas no aquário" e "fora do páreo" fala sobre estar fora das decisões da humanidade, do governo e da vida econômica ou social. A sensação de sufocamento do peixe e a prisão da borboleta, as localizações invertidas: sentimento do/no mundo. 

"Um prazer cada vez mais raro
Aerodinâmica num tanque de guerra
Vaidades que a terra um dia há de comer

"Ás" de Espadas fora do baralho
Grandes negócios, pequeno empresário
Muito prazer, me chamam de otário"

Aqui, os primeiros três versos reforçam o que impulsionou o CD. Sabemos que o ricos não vão para o campo de batalha, mas empurram toda a humanidade a uma catástrofe. A indústria do armamento, por exemplo, precisa que as bombas sejam usadas para produzir... bombas.

Os outros três falam que o povo está por fora do jogo, das decisões, por não ter dinheiro. Ao mesmo tempo vendem que qualquer um pode ser rico - uma ilusão ou "grandes negócios...".

"Por amor às causas perdidas
Tudo bem, até pode ser
Que os dragões sejam moinhos de vento
Tudo bem, seja o que for
Seja por amor às causas perdidas"

Aqui voltamos às utopias igualitaristas e a suas propostas de resolver o absurdo que é o mundo. Há um certo pessimismo já que estas utopias sofreram abalos na década de 1990 (por amor às causas perdidas). Mas também mostra a necessidade de sonhar, apesar de tudo. Entre a esperança e o medo, os temíveis dragões podem ser, na verdade, quem sabe, apenas moinhos de vento.

"Por amor às causas perdidas
Tudo bem, até pode ser
Que os dragões sejam moinhos de vento
Muito prazer, ao seu dispor
Se for por amor às causas perdidas
Por amor às causas perdidas"

Reforça o anterior. O mais curioso é que estas utopias começaram a ressurgir na época do lançamento da canção. 

Há uma relação interessante. Dom Quixote comunica-se com Segunda Feira Blues I e II, música ao seu lado, do mesmo CD. Na letra diz: "Onde estão os caras que diziam que a guerra ia acabar, onde estão os caras que diziam que a maré ia virar" e "Onde estão os caras que lutavam dia-a-dia sem perder a ternura jamais?" em uma referência direta ao texto de Chê Guevara "É preciso endurecer, mas sem jamais perder a ternura".

Dom Quixote tem o sentimento das utopias, dos sonhos, das revoluções. São as horas em que percebemos que o mundo, tal como está, nos passa a sensação de otários e precisamos mudá-lo. Talvez sonhar seja um bom começo.



João Paulo da Síria